19.2.11

Toque de ira

frívola falsa-fala
em fogo é fardo é
foda.

rasga-corpo, em
seda, cama.
perna em cima,
braço embaixo;

[não respeita
nem velório]

toca en(m)torno
faz transtorno
rima com lábio-bo
ca]

resplandece-mão
que arranha, eno-
brece pés que pi-
sam em minha
verve.

17.2.11

Miguel e Luiza - IV


A NÉVOA tomava conta da casa. A luz era azulada, inconstante e era impossível discernir se era dia ou noite. Aparentava um estado inebriado e sentia como se fossem cinco da manhã, justamente naquela hora quando o dia ameaça raiar e você não consegue mais segurar o sono. Ainda estava bêbado, pensou com toda certeza. Caminhou pelo corredor e se deparou com uma estranha imagem: numa pequena poltrona, sentado de pernas cruzadas estava seu pai. Ele o observava com um ar de superioridade extremamente irritante. Tinha os cabelos esvoaçados, óculos de aro grosso e pretos que repousavam sobre o grande nariz. Levantou lentamente os olhos sem sequer mover a cabeça com tom de cumplicidade e repousando as mãos por sobre os joelhos suspirou.

- Você não aprende, hein, garoto? A voz roufenha irritava Miguel.

- O que você está fazendo aqui?

- Vigiando você, garoto.

- Eu já não te disse que não quero saber de você por aqui?

O velho sorriu e abaixou a cabeça. As costas pareciam protuberantes e pouco a pouco se tornaram trêmulas. Ele parecia estar rindo e em crescente revelava seu sentimento. As risadas tornaram-se gargalhadas cada vez mais altas e atordoantes. Miguel queria tapar os ouvido, mas estava fraco demais. As mãos não chegavam até lá. Sentia-se aflito e as pernas não respondiam mais. Não conseguia sair do lugar.

Até que acordou.

Murmurou timidamente pra si próprio:

- Puta que pariu de pesadelo.

Tinha as costas molhados e sentiu que estavam coladas no sofá de curvim branco de sua sala, pensou em levantar, mas foi persuadido pelas dores no corpo e pela preguiça. Já que restavam algumas horas até que João fosse lhe buscar preferiu permanecer onde estava, sentindo palpitar o coração assustado pelo pesadelo. “Ah, velho filho da puta, nem assim me deixa em paz”, praguejou em pensamento. Sentiu a aflição percorrer seu corpo e arrepiar os cabelos dos braços, suou frio novamente, e os olhos que ardiam pareciam enxergar turvo novamente. “É hora do santo remédio” pensou consigo.

Foi até a cozinha lamentando a existência. Abriu uma pequena caixa ao lado do purificador de água, e procurou entre a caixa de curativos, as Novalginas vencidas, os remédios Homeopáticos abandonados e entre as caixinhas amigas de Valium, seu Apraz.

- Aí está você, meu camaradinha! Deixa eu te engolir para o mundo não me engolir.

Miguel achava graça das infrutíferas tentativas de tratar sua ansiedade crônica. Já havia tentado de tudo: ioga, tantra, musicoterapia, terapia de grupo, arranjar um emprego decente, casar-se. Mas tudo era em vão. O bom e velho Apraz era seu melhor amigo. Remediar-se era um gesto mecânico. Valia mais pelo copo d’água do que pela droga. Sentia-se cínico, provocador, e isso acentuava ainda mais sua ansiedade. Era de fazer doer as costas e suar a nuca. Mas Miguel desaprendera viver sem isso. Encarava sua medicação com a frivolidade e resignação de quem fazia mais uma refeição.

Eram quatro da tarde e sentiu fome. Seu estomago parecia estar em descompasso com o intestino. Um pedia comida e o outro se queixava dos excessos da noite anterior. O que fazer? Viver era um constante exercício de contradizer o corpo, dizer não quando ele pede que diga sim. Fingir que não ouviu um clamor. Poderia abrir a geladeira e tentar fazer uma salada, beber um suco. Slow Food. Mas também podia ir até a padaria e servir-se de gramas e gramas de compostos de gordura trans, carboidratos, proteína animal. O cérebro agradece quando o estômago sofre.

Calçou os chinelos, vestiu uma blusa velha, com dois furos embaixo do braço esquerdo, ajeitou furtivamente o cabelo e rumou a padaria.

14.2.11

Miguel e Luiza - III (para ler ouvindo o tango no final do post)

A casa parecia um pouco mais viva. Do banheiro exalava um perfume bom, mistura do cheiro de sabonete e de xampu. Luiza tomava banho e ele achava graça da porta entreaberta que lhe permitia observa-la pelo espelho. Mais engraçado era o fato de que a convidada nem havia pedido a permissão para tomar o banho. Achava todo aquele silêncio um tanto quanto interessante apesar de sentir-se aflito para entender como tudo havia culminado naquilo.

Aproveitou estes momentos para separar seu material de trabalho. Na condição de fotógrafo profissional era muito zeloso com seu equipamento. Escolheu as lentes adequadas para o serviço que executaria na noite, e de forma metódica colocava-as lado a lado em cima da escrivaninha da sala de seu pequeno apartamento. A vontade de quebrar o silêncio sepulcral lhe fez colocar uma música. La vida mia, um tango dos irmãos Fresedo. Agora se sentia melhor. Deixou todo material em cima da escrivaninha como se tivesse montado um rol materializado. Sentou-se no sofá e acendeu uma cigarrilha que ainda lhe restava com seu velho Zippo. Observava seu equipamento com certo prazer e parecia ser um dos poucos momentos onde se distraía e conseguia não pensar em nada.

Luiza saiu do banheiro envolta em sua toalha e ele achou isso engraçado. Seus cabelos negros estavam molhados e rigorosamente penteados para trás. No rosto algumas gotículas de água tornavam seu doce rosto ainda mais interessante. Ela caminhou pelo corredor e Miguel percebeu que ela deixava um pequeno rastro de gotas d’água. Sorriu para ele rapidamente como quem faz um pequeno esforço para modificar a face. Um daqueles sorrisos compráveis a um levantar de sobrancelhas que usamos para cumprimentar pessoas pouco conhecidas. Ele pensou.

- Que atrevida esta pequena. Como gosto disso.

E quando achou que ia receber alguma palavra ela virou a direita para o quarto, como se estivesse em casa. Ele parou na porta, encostou-se no batente e observou-a vestir-se. Peça a peça. Parecia estar sendo apresentado àquela mulher. A blusa de listras coloridas na horizontal que deixava transparecer o ombro e a alça de um top preto. A calça jeans black de corte moderno com dois furinhos no bolso traseiro. Sentou-se por fim para se calçar e ele reparou que ela se calçava com as pernas cruzadas e não perdeu de vista os pés delicados que se enfiavam em pequenos calçados de plástico. Sentia-se calmo.

- Não fala nada? Ela cobrou, já que estava ali há cinco minutos sendo observada.

- Você também não fala nada, retrucou.

Ela franziu a testa e movimentou o canto da boca fechada para cima como se quisesse dizer, “é verdade!”. E levantou-se da beirada da cama com uma vitalidade de dar inveja ao anfitrião.

- Tango? Gosta realmente de Tango?

Ele pensou em uma resposta elaborada que desse conta de transparecer uma opção madura, mas quando ia falar iniciou-se no som La Cumparsita e ele pensou “meu Deus, quanto clichê!”. Ela tomou-lhe pelos braços imitando uma espécie de dançarina de Tango com o rosto colado no seu e com os braços esticados o guiou de forma inesperada até a porta. Quando o largou ela sorria de forma arrebatadora.

- Então é isso, Miguel! Ela dizia isso num tom de despedida.

- Nem conversaremos mais? Arrependeu-se extremamente de demonstrar tanto interesse. O que pensaria dele?

Ela caminhou pela sala, olhando de um lado para o outro como quem procurava algo. Ao lado das lentes e da câmera estava um cupom fiscal de supermercado. Ela encontrou uma caneta de ponta grossa, daquelas usadas para marcar mídias e escreveu algo. Para a surpresa de Miguel deixou ali mesmo o papel.

Luiza ergueu as sobrancelhas como se anunciasse o inevitável e disse:

- Me liga um dia. Ela tocou os próprios lábios com dois dedos, o indicador e o médio, e levou-os a boca de Miguel como se desse um beijo simbólico no rapaz. Abriu a porta e desceu pelas escadas deixando pra trás um ar tão misterioso quanto à noite que havia passado.


11.2.11

Miguel e Luiza - II

Só não se sentiu mais surpreso porque queria atender ao telefone. E caminhava tentando não se abater pela indelicada observação da convidada. O cansaço que lhe tomava parecia tornar a tarefa de encontrar o telefone ainda mais difícil e nessa hora praguejou contra si por ter optado por um sem fio. Nunca estava no local adequado.

Atendeu sem conseguir reparar o identificador de chamadas e enquanto uma mão juntava o telefone a sua orelha a outra apalpava o sofá onde buscava refúgio da sua tonteira e de seu cansaço.

- Alô, disse ele, sem esconder a voz transtornada.

- Salve, salve seu cachorrão... Está vivo? A voz do outro lado era baixa e aparentava escárnio.

- Quem é? Ele perguntava enquanto tentava observar sua situação por baixo da cueca. Achava que poderia ter algum indicio do que realmente acontecera no dia anterior.

- É João, porra, teu chefe honorário. Dizia isso rindo como um cachorro velho.

- Ah, diga, meu caro. É que estou um pouco gripado. Ouviu uma risadinha abafada vindo lá do quarto e isso o deixou realmente excitado.

- Vai poder trabalhar para mim esta noite?

Ele pensou duas vezes. A ressaca daquela manhã parecia que nunca terminaria. A dor de cabeça que lhe dominava o impedia de tomar decisões. Resolveu levantar para tomar uma água e quem sabe pensar melhor sobre o assunto. E enrolou:

- O que seria?

A voz do outro lado parecia surpresa.

- O de sempre. Afinal você sabe fazer outra coisa?

Enquanto bebia a água procurava sua carteira. Era de praxe depois de uma bebedeira temer pelo dinheiro e seus documentos. Encontrou-a na mesa da cozinha e abriu com os dedos utilizando uma única mão. Concluíra que a noite anterior havia sido dispendiosa, e não hesitou:

- Sim, claro. Diga onde, e a que horas...

- Buscarei você na sua casa as oito, pode ser?

Ele achou ótimo.

- Claro, te aguardo.

Desligaram e ele sentiu alívio, já que se trabalhasse naquela noite poderia restituir os gastos anteriores. Odiava ficar duro e ter que se privar de suas bebidinhas prediletas, de seus cigarros e principalmente das boas comidas.

Voltou ao quarto ainda pensando sobre o trabalho e deparou-se com a sua convidada de pé. Era uma jovem de pele clara, cabelos curtos, corpo bonito. Ela se inclinava para vestir a calcinha e deixava transparecer ao ficar em um pé só, uma doce barriguinha, daquelas puras, aparentemente compostas quase exclusivamente pela pele. Ao vê-lo, a doce menina transmitiu um sorriso que ele achou demasiadamente sincero. Ela acabou de vestir a peça íntima de frente para ele, fazendo um movimento pélvico como se o chamasse. O anfitrião fitou suas mãos delicadas que tocavam a calcinha levemente e subiam em um gesto quase ensaiado. Ele sentiu este movimento ondular como uma provocação. Reparou que ela era alguns centímetros mais alta do que ele. Tinha no braço esquerdo algumas tatuagens que tomavam o ombro e no mamilo esquerdo um pequeno piercing que dava graça aos seios médios.

Atendeu seus instintos e sem muita conversa resolveu tomar a pequena em seus braços. Deu-lhe um beijo sem temer os hálitos matinais pouco agradáveis e nem reparou se de fato havia algo de errado com isso. Ela correspondeu e lhe abraçou na altura da nuca, acariciando seu cabelo. Tomou-a pelas nádegas e ela como se soubesse o que ele queria cruzou as pernas rapidamente em sua cintura. Demonstrando muita habilidade, tombou o corpo para a cama como se estivesse em casa. Ele caiu por sobre ela e fizeram amor com muito vigor, sem respeitar as limitações dos corpos ressaqueados. Ao final a cabeça latejava, o suor escorria pelo seu rosto e o silêncio predominava. Ao retomar a respiração ele olhou para o lado sem virar o corpo. Ela fez o mesmo. Entreolharam-se, pela primeira vez com algum aspecto de cumplicidade. Ele estendeu a mão trêmula e disse:

- Muito prazer, meu nome é Miguel.

- Luiza. E o prazer é todo meu.

10.2.11

Miguel e Luiza - I

O céu era azul e o dia tinha um cheiro molhado. Não sabia se havia chovido por toda madrugada, nem se o verão chegara com seus dias úmidos. Era tudo que ele poderia perceber deitado na cama, observando a fresta da janela que aparecia quando o vento soprava delicadamente a suspender o cortinado de seu quarto. O máximo que se permitia imaginar e o pouco que sua cabeça tomada de dor poderia especular. Seu rosto formigava num movimento intenso que parecia vir das orelhas e terminar na ponta do nariz. O suor descia até parar nas têmporas, percorrendo lentamente as suas costeletas, jorrando pelos cabelos desarrumados. Abaixo dos olhos parecia concentrar toda oleosidade da pele tornando brilhantes suas olheiras, conquistadas por anos a fio de noites mal dormidas.

Acordara, porém mal conseguira erguer a cabeça. Sentia que a roupa de cama havia deixado de cobrir metade do colchão e isso justificava o incômodo nas costas provocado pelo roçar da pele com o tecido. O edredom velho encontrava-se no chão e ao invés do travesseiro, sua cabeça recostava-se numa almofada de retalhos que costumava utilizar para ler antes de dormir. A barriga doía e o coração palpitava, uma mão trêmula trouxe acima o short de dormir enquanto a outra esfregava os olhos cheios de secreções cristalizadas que arranhavam sua visão e a tornava ainda mais difícil. Era necessário ficar de lado para respirar melhor. Talvez colocasse os óculos e abriria um livro que trouxesse esperanças para apartar a aflição duradoura que tomava sua mente sempre que acordava de ressaca.

Rapidamente fez um exame mental, sucinto, de toda trajetória da noite anterior e sua consciência lhe jogou fortuitamente a primeira: EASY PUB. A lembrança veio na forma de um letreiro de néon vermelho. Sentiu na garganta o gosto de Dry Martini e pensou que isso nunca poderia prestar. Mais uma placa lhe atormentou a cabeça: REAL HOT. Temeu que o sentimento adolescente pudesse ter lhe tomado o corpo e teria parado em alguma casa de tolerância. Porém rapidamente a razão lhe recobrou e se lembrou que a placa em questão era na verdade o letreiro luminoso do Real Hotel, com as duas últimas letras queimadas há anos. Sentiu alívio por que tinha vergonha de ir à puteiros, mas temeu pelas companhias. Havia passado em um hotel? E com quem?

Virou-se para seu lado direito e não encontrou lugar na cama. Um corpo lúbrico, coberto pelo lençol branco até a cabeça estava ao seu lado. Sentiu uma espécie de aflição que lhe percorreu a nuca até os intestinos. Fitou-o de cima a baixo e percebeu os pés desnudos. Eram belos pés femininos, sinuosos e delicados, extremamente brancos. As unhas traziam uma tonalidade de vermelho extremamente agradável e ele por um minuto pensou em todos aqueles nomes engraçados de esmalte. Tentou pensar qual seria o nome daquela tonalidade que lhe deixava paralisado. Por dois segundos os pés se mexeram, roçaram um nos outros, se coçando ou se contorcendo, pouco importava. Aquilo lhe deixava extremamente excitado. Aqueles belos pés acenando como se estivessem num exercício sensual. Precisara agora tomar coragem de conhecer o resto deste corpo. Ao menos sabia que os pés valiam a pena. Se na noite anterior tivesse se dedicado as suas fantasias mais esdrúxulas como beijar e lamber aqueles pés, por alguma coisa o porre teria valido a pena. Porém antes que pudesse pensar em qualquer coisa o telefone tocou. Ele nunca deixava de atender ao telefone, era ansioso demais. Tentou levantar delicadamente, já que o único jeito de sair da cama e tomar o caminho da sala onde ficava o telefone era justamente por cima de sua doce convidada. Não hesitou em deixar seu corpo esbarrar lentamente no dela, como se estivesse sinalizando de forma carinhosa que estava aberto para um primeiro encontro consciente. Nenhuma resposta. Ao levantar sentiu uma leve tonteira e pernas fracas. Abriu lentamente a porta e passou ao corredor sentindo nos olhos os efeitos da claridade. Ainda ouviu a voz baixa em tom de sarcasmo:

- Você ronca bastante, hein, guri...

8.2.11

Forra

num quarto a meia luz, se ajeita
à cama, corpo de mulher.

são pés que eu já conheço, de resto
sobra imaginar, curvas, sonhar
bocas.

marcar cena, entrar no quarto
feito fuga combinada, é dia
:
- pra virar noite.

no mesmo telefone que anunciei
minha chegada, marco a hora do
despertador, teus olhos claros me
acompanham quando cruzo o quar-
to.

a tão linda a boca
canta um canto de
anunciação, é per-
na, é falo, é lingua
é braço, é raso, é
saliva, é vulto na
parede, é corpo
é a forra.

desde então, é sorriso.

2.2.11

Ninguém falou



Passava boa parte das suas horas sentada num dos bancos ao lado do Fórum Benjamin Colucci, no Parque Halfeld. Aparentava pouco mais de 50 anos, trajando roupas velhas mas sempre curtas, com decotes. Brincos grandes, batom vermelho. Nunca a vi magra.

Ao lado, sempre uma sacola de supermercado, em cima das pernas a bolsa de couro vermelha. Sempre o mesmo olhar, artificial aos velhos que passavam a encarar. Um pálido sorriso, um olhar, ainda que gélido, revelando a natureza de quem encara a vida. Era um sorriso de resignação.

O horário era disciplinado, tanto para chegar quanto para sair. Afinal em casa deixava família - nunca soube de marido - mas filhos existiam. Isso soube num dia que a vi com um desses pequenos albuns de fotografia, retirados da bolsa vermelha, e exibidos com orgulho para as outras, que assim como ela, passavam as tardes ali.

- Ta vendo? Esse é meu caçula. Essa aqui é a mais velha, já tá com 18 anos...

As poucas vezes que resolvi tomar café na Padaria Nacional encontrava com ela, tomando uma média. Discretamente pagava com algumas moedas, comprava um cigarro a varejo com o troco, acendia ali mesmo no caixa

- Mais alguma coisa, Dona Lúcia?

A resposta era sempre em voz baixa, enquanto soprava a fumaça do primeiro trago.

- Não meu filho, obrigado...

Eu olhava para o senhor do caixa, ele sempre dava um sorriso de canto, e apontava para ela, com as sobrancelhas, como quem diz algo. Eu nunca entendi. Mas poderia subentender que todos sabiam mais que eu sobre ela.

E provavelmente voltava para seu banco, com sua sacola, sua bolsa. Suas roupas velhas, curtas e decotadas. Suas pernas marcadas, cicatrizes, as varizes. A pele queimada de sol. O cabelo de uma cor que nunca saberia identificar.

Era Dona Lucia e suas amigas a sentar o dia inteiro nos bancos em frente o fórum, enquanto circulavam advogados, culpados, inocentes, vítimas, intimados, vendedores de picolé, catadores de papel.

Eu sempre passava por lá, a identificava e nunca tive sequer coragem de olhar em seus olhos.

Na semana passada minhas férias foram interrompidas por questões de trabalho, mais precisamente pela morte do pai de um colega de trabalho. Fui ao cemitério consolar o amigo e ajudar a velar o corpo, apesar de não ser muito afeito a essas coisas.

Na capela ao lado me chamou a atenção uma cena. Uma moça de aparentemente 18 anos sentada numa cadeira do lado trazia no colo uma criança, com semblante estático. Olhos parados. Rosto pétreo.

Em alguns minutos uma confusão se formou. Um repórter de um canal local tentou se aproximar e fazer contato mas logo foi impedido. Curioso, me aproximei para checar o que acontecia e pude reconhecer Dona Lúcia, ali no caixão.

O lado esquerdo da sua face estava totalmente inchado e tomado por hematomas. Do nariz, um pequeno dreno saía, e tornava ainda mais triste aquela cena. Saí de lá, assustado, impressionado com a cena que acabara de ver. Pude ainda ouvir alguns comentários, onde pude distinguir as palavras "hotel", "parque Halfeld", "suspeito" e nada mais.

No dia seguinte as suas companheiras ainda estavam lá, no mesmo banco, lado a lado com os mesmos personagens. A TV não falou nada. Os jornais não falaram nada.

A cidade, aliás, nunca falou nada sobre nenhuma daquelas mulheres, quem eram, ou o que faziam.

Nem eu falei.