10.2.11

Miguel e Luiza - I

O céu era azul e o dia tinha um cheiro molhado. Não sabia se havia chovido por toda madrugada, nem se o verão chegara com seus dias úmidos. Era tudo que ele poderia perceber deitado na cama, observando a fresta da janela que aparecia quando o vento soprava delicadamente a suspender o cortinado de seu quarto. O máximo que se permitia imaginar e o pouco que sua cabeça tomada de dor poderia especular. Seu rosto formigava num movimento intenso que parecia vir das orelhas e terminar na ponta do nariz. O suor descia até parar nas têmporas, percorrendo lentamente as suas costeletas, jorrando pelos cabelos desarrumados. Abaixo dos olhos parecia concentrar toda oleosidade da pele tornando brilhantes suas olheiras, conquistadas por anos a fio de noites mal dormidas.

Acordara, porém mal conseguira erguer a cabeça. Sentia que a roupa de cama havia deixado de cobrir metade do colchão e isso justificava o incômodo nas costas provocado pelo roçar da pele com o tecido. O edredom velho encontrava-se no chão e ao invés do travesseiro, sua cabeça recostava-se numa almofada de retalhos que costumava utilizar para ler antes de dormir. A barriga doía e o coração palpitava, uma mão trêmula trouxe acima o short de dormir enquanto a outra esfregava os olhos cheios de secreções cristalizadas que arranhavam sua visão e a tornava ainda mais difícil. Era necessário ficar de lado para respirar melhor. Talvez colocasse os óculos e abriria um livro que trouxesse esperanças para apartar a aflição duradoura que tomava sua mente sempre que acordava de ressaca.

Rapidamente fez um exame mental, sucinto, de toda trajetória da noite anterior e sua consciência lhe jogou fortuitamente a primeira: EASY PUB. A lembrança veio na forma de um letreiro de néon vermelho. Sentiu na garganta o gosto de Dry Martini e pensou que isso nunca poderia prestar. Mais uma placa lhe atormentou a cabeça: REAL HOT. Temeu que o sentimento adolescente pudesse ter lhe tomado o corpo e teria parado em alguma casa de tolerância. Porém rapidamente a razão lhe recobrou e se lembrou que a placa em questão era na verdade o letreiro luminoso do Real Hotel, com as duas últimas letras queimadas há anos. Sentiu alívio por que tinha vergonha de ir à puteiros, mas temeu pelas companhias. Havia passado em um hotel? E com quem?

Virou-se para seu lado direito e não encontrou lugar na cama. Um corpo lúbrico, coberto pelo lençol branco até a cabeça estava ao seu lado. Sentiu uma espécie de aflição que lhe percorreu a nuca até os intestinos. Fitou-o de cima a baixo e percebeu os pés desnudos. Eram belos pés femininos, sinuosos e delicados, extremamente brancos. As unhas traziam uma tonalidade de vermelho extremamente agradável e ele por um minuto pensou em todos aqueles nomes engraçados de esmalte. Tentou pensar qual seria o nome daquela tonalidade que lhe deixava paralisado. Por dois segundos os pés se mexeram, roçaram um nos outros, se coçando ou se contorcendo, pouco importava. Aquilo lhe deixava extremamente excitado. Aqueles belos pés acenando como se estivessem num exercício sensual. Precisara agora tomar coragem de conhecer o resto deste corpo. Ao menos sabia que os pés valiam a pena. Se na noite anterior tivesse se dedicado as suas fantasias mais esdrúxulas como beijar e lamber aqueles pés, por alguma coisa o porre teria valido a pena. Porém antes que pudesse pensar em qualquer coisa o telefone tocou. Ele nunca deixava de atender ao telefone, era ansioso demais. Tentou levantar delicadamente, já que o único jeito de sair da cama e tomar o caminho da sala onde ficava o telefone era justamente por cima de sua doce convidada. Não hesitou em deixar seu corpo esbarrar lentamente no dela, como se estivesse sinalizando de forma carinhosa que estava aberto para um primeiro encontro consciente. Nenhuma resposta. Ao levantar sentiu uma leve tonteira e pernas fracas. Abriu lentamente a porta e passou ao corredor sentindo nos olhos os efeitos da claridade. Ainda ouviu a voz baixa em tom de sarcasmo:

- Você ronca bastante, hein, guri...

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