17.2.11

Miguel e Luiza - IV


A NÉVOA tomava conta da casa. A luz era azulada, inconstante e era impossível discernir se era dia ou noite. Aparentava um estado inebriado e sentia como se fossem cinco da manhã, justamente naquela hora quando o dia ameaça raiar e você não consegue mais segurar o sono. Ainda estava bêbado, pensou com toda certeza. Caminhou pelo corredor e se deparou com uma estranha imagem: numa pequena poltrona, sentado de pernas cruzadas estava seu pai. Ele o observava com um ar de superioridade extremamente irritante. Tinha os cabelos esvoaçados, óculos de aro grosso e pretos que repousavam sobre o grande nariz. Levantou lentamente os olhos sem sequer mover a cabeça com tom de cumplicidade e repousando as mãos por sobre os joelhos suspirou.

- Você não aprende, hein, garoto? A voz roufenha irritava Miguel.

- O que você está fazendo aqui?

- Vigiando você, garoto.

- Eu já não te disse que não quero saber de você por aqui?

O velho sorriu e abaixou a cabeça. As costas pareciam protuberantes e pouco a pouco se tornaram trêmulas. Ele parecia estar rindo e em crescente revelava seu sentimento. As risadas tornaram-se gargalhadas cada vez mais altas e atordoantes. Miguel queria tapar os ouvido, mas estava fraco demais. As mãos não chegavam até lá. Sentia-se aflito e as pernas não respondiam mais. Não conseguia sair do lugar.

Até que acordou.

Murmurou timidamente pra si próprio:

- Puta que pariu de pesadelo.

Tinha as costas molhados e sentiu que estavam coladas no sofá de curvim branco de sua sala, pensou em levantar, mas foi persuadido pelas dores no corpo e pela preguiça. Já que restavam algumas horas até que João fosse lhe buscar preferiu permanecer onde estava, sentindo palpitar o coração assustado pelo pesadelo. “Ah, velho filho da puta, nem assim me deixa em paz”, praguejou em pensamento. Sentiu a aflição percorrer seu corpo e arrepiar os cabelos dos braços, suou frio novamente, e os olhos que ardiam pareciam enxergar turvo novamente. “É hora do santo remédio” pensou consigo.

Foi até a cozinha lamentando a existência. Abriu uma pequena caixa ao lado do purificador de água, e procurou entre a caixa de curativos, as Novalginas vencidas, os remédios Homeopáticos abandonados e entre as caixinhas amigas de Valium, seu Apraz.

- Aí está você, meu camaradinha! Deixa eu te engolir para o mundo não me engolir.

Miguel achava graça das infrutíferas tentativas de tratar sua ansiedade crônica. Já havia tentado de tudo: ioga, tantra, musicoterapia, terapia de grupo, arranjar um emprego decente, casar-se. Mas tudo era em vão. O bom e velho Apraz era seu melhor amigo. Remediar-se era um gesto mecânico. Valia mais pelo copo d’água do que pela droga. Sentia-se cínico, provocador, e isso acentuava ainda mais sua ansiedade. Era de fazer doer as costas e suar a nuca. Mas Miguel desaprendera viver sem isso. Encarava sua medicação com a frivolidade e resignação de quem fazia mais uma refeição.

Eram quatro da tarde e sentiu fome. Seu estomago parecia estar em descompasso com o intestino. Um pedia comida e o outro se queixava dos excessos da noite anterior. O que fazer? Viver era um constante exercício de contradizer o corpo, dizer não quando ele pede que diga sim. Fingir que não ouviu um clamor. Poderia abrir a geladeira e tentar fazer uma salada, beber um suco. Slow Food. Mas também podia ir até a padaria e servir-se de gramas e gramas de compostos de gordura trans, carboidratos, proteína animal. O cérebro agradece quando o estômago sofre.

Calçou os chinelos, vestiu uma blusa velha, com dois furos embaixo do braço esquerdo, ajeitou furtivamente o cabelo e rumou a padaria.

1 comment:

Káthia said...

Adorando e esperando os próximos capítulos.