12.3.11

De onde eu sou

São João da Mata - vista aérea

De onde eu sou, eu sei, apesar de ter vindo de muitos lugares. parece a sina de versador com a sacola nas costas. papel, caneta, coração na ponta do lápis.

cresci na barriga de uma mãe amorosa no sul das Minas dos Matos Gerais. A cidadezinha de São João da Mata, terra de índios Abatingueras, em constante litígio com bandeirantes paulistas, friagem de doer os ossos nas noites de inverno. Mas frio nenhum era páreo pras portas abertas, salas cheias de gente, onde o limite entre vizinhança e família nunca se fez certo, graças a boa hospitalidade mineira. Casa cheia, cozinha esquentando o resto do lar. Panelas cantando, tábuas batucando sob facas que cortam legumes e verduras, água de bica que cai na panela, ferve, cheira, apimenta, prova, canta, ri, chora, relembra. O mundo é cozinha boa.

Mas São João da Mata não tinha hospital. Vai pai, vai mãe, corre pr'o moleque nascer em Pouso Alegre, é logo ali. Passa avoando por Machado, cuidado com o radar. Balança as estrturas do Fiat147 zero bala, seu Oswaldo, que o moleque quer sair pra viver a vida. Nasce, e volta. Por que ele quer mesmo é ser sãojoanense, acordar e sentir cheiro de milho cozido, cural,paçoca, leitoa. Ouvir o Seu melado, velho sábio entoar canções ao violão, logo ali na sala. Corre, minha gente, que a família já pegou a estrada pra ver o molecote que nasceu.

- Cadê Anacharsis, Vadico?
-Ah, Dona Lezy, ele foi almoçar na casa do vizinho, mas quando estava voltando o folião convidou pra tomar uma pinga na parada da folia e ele topou. Abriu o apetite e o prefeito chamou pra almoçar na casa dele. Convite do prefeito, não se recusa.

Azar da leitoa que foi pra panela. E Vovô Rattes fazia sucesso nas ruas da pequena cidade, de casa em casa, não negava convite.

Tio Iriê quando chegou mal entrou em casa. Pai interpelou e foram afogar saudade em copo de gelada. Quatro horas depois os amigos retornam a residência, embebidos em felicidade. Eis que o Iriê saca da mala um jogo de vareta e inicia o desafio.

-O que é esse barulho? é chuva batendo na janela, Waninha?
-Nada, querido. É que essa hora a besourada sai da mata e bate na janela, preocupa não.

Zé Guto, meu padrinho, tio mais novo sente em São João da Mata sua grande liberdade. Com 18 anos, acompanhado do primo Wilsomar, que Deus o tenha, vai curtir os forrós e cortejar as mocinhas, voltar de madruga em estrada de terra, escura, com luz-pequena de pirilampo, quando muito lua cheia abençoada.

- Ô Wilsomar, você viu que eu peguei na mão daquela menina?
-Pois é, elas nem queriam que a gente fosse embora...

Um dia voltamos pra Juiz de Fora, onde pai e mãe viveram desde cedo. Eu nem era dono de mim. Mas tenho certeza que já tinha decidido que era juizforano do miolo, até o talo.

De São João da Mata ficaram as lembranças da casa ampla, da samambaia, da cozinha, das brincadeiras da sala, dos carinhos da ajudante Sandra, que cuidava como se eu fosse filho, do burburinho da rua onde crianças brincavam, da Folia de Reis que entrava em casa e fazia oração. Da Congada que passava e dos carreiros, que davam som a rua, com seus carros de boi.

Mas eu já havia decidido que era súdito da Princesa de Minas, Vam'bora que é hora.

Na Princesa de Minas, Juiz de Fora, Santo Antonio do Paraybuna, Manchester Mineira, era vida nova, vida velha, outros santos, outras festas.

Entra no carro com o Vô Rattes, vai no açougue. Hoje tem churrasco. Final de semana é dia de ir pra cidade alta. Brincar com primos, brincar de serra. Reviver o frio. Brincar com os primos e primas, pipa-papagio, casa de árvore, chão de terra.

E por ocasião de trabalho da Dona Wânia o molecote vai viver boa parte de suas horas do dia no Mariano procópio, brejeando o Paraibuna, margeando córrego, estourando dedo em rua calçada de pedra. Estudando em escolinha, ali mesmo. O molecote se sagra moleque de verdade. Da roça ao subúrbio, do matão à várzea. Cruza a avenida Rio Branco, vai almoçar na Vó Penha todo dia, ser cuidado pelas tias, e no final do dia ganhar beijo e abraço de mãe.

-Mãe, posso brincar no terreiro?
-Mas meu filho, eu sou sua vó, a sua mãe é a Wânia.
-Eu sei, vó. Mas é por que eu tenho duas mães.

E assim foi, e sempre será.

Eu vim de um monte de lugares. Pude até escolher de onde eu vim. Cabe a mim viver e morrer de amor por esses pedaços de mim, espalhados pela geografia intensa das Minas Gerais.

3 comments:

Farley Rocha said...

"Por que ele quer mesmo é ser sãojoanense, acordar e sentir cheiro de milho cozido, curral, paçoca, leitoa."
Isso me é muito familiar, porque aqui nas montanhas do leste se vive nessa mesma "geografia intensa de Minas".
Minhas visitas silenciosas tb passam pelo seu blog, amigo. Aliás, não é de hoje que sou seguidor dessa cena blogueira juizforana: Priamo, Alexandre Faria, você.

Abraços do leste a ti!

João Paulo de Oliveira said...

memorialista com a hospitalidade mineira

Ariane said...

Seu texto é lindo! De lacrimejar os olhos.