7.4.12

Corcel II

- Uma boa noite aos ouvintes da sua, da nossa Rádio Cidade Bela. Agora no comando da noite, eu, Sérgio Lourenço, a sua companhia das madrugadas em ondas curtas. São exatamente três e trinta de uma madrugada bela e fresca. É possível que o senhor e a senhora, encostados nessa insônia sintam o olor da Dama da Noite que inunda os jardins de nossa pacata cidade. E para você que nos acompanha do trabalho, de casa, da rua, com o coração feliz ou angustiado, nada melhor que uma bela canção para relaxar. Por favor, Amadeu, meu filho, toca aquela preciosidade que você separou para nós.

Sempre que se aproximava do posto abaixava o rádio. Nunca sabia se o cheiro de gasolina vinha de fora ou de dentro do carro. Diminuiu a velocidade e olhou para o banco de trás. O estofado rasgado, um galão vazio e uma mangueira muito utilizada para roubar gasolina de tanques alheios.

Encostou o Corcel II próximo a bomba de gasolina comum. Desligou o motor e saiu para fumar um Charm longo enquanto o Gordo colocava os mesmos quinze reais de gasolina de sempre.

- Tudo em ordem hoje, Charles?
- Tudo, como sempre, Gordo.

Abriu um botão da camisa de tergal vermelha, ajeitou no peito uma medalha de São Cosme e São Damião. Encostou-se no caminhão tanque e retirou do fundo do bolso um isqueiro Bic que combinava com sua camisa.

Sentia prazer em fumar no posto de gasolina.

De lá o Gordo gritou:

- Nem vou perguntar se quer que cheque o óleo ou lave o para-brisa.
- Isso gordo, fica calado.

Entregou o dinheiro levemente amassado, sorriu de forma cinica e arrancou com o velho Corcel II em direção a madrugada escura. 

Andou vinte quilometros sentindo vento bater no rosto. O único barulho que competia com o motor era o da lataria velha rangendo. A cada curva sentia os amortecedores implorarem por uma troca.

- E olha meu amigo ouvinte, minha amiga ouvinte, quem nos escreveu essa quarta-feira foi a Dona Maria Aparecida dos Santos lá do Canto da Obra. Ela manda um abraço para toda nossa equipe e pede que toquemos uma linda canção que a faz lembrar de sua juventude. Vocês vão reconhecer essa música, tenho certeza que já amaram muito ao som dela. E para você, Dona Maria, o abraço carinhoso do Sérgio Lourenço de toda equipe da Rádio Cidade Bela, a sua companhia na madrugada das ondas curtas.

Antes de entrar a esquerda, numa estrada de terra, abaixou novamente o rádio e ligou o farol alto. Uma das poucas coisas que ainda funcionavam no velho Corcel II.

Avistou a pequena casa em meio a escuridão. Amarela, com duas janelas ladeando uma varandinha singela que dava espaço para a porta da frente. Um suporte de plantas com uma samambaia, no chão um vaso de "comigo-ninguém-pode" dividindo espaço com espadas de São Jorge. Na porta estava colado um pequeno folheto da novena de São Judas tadeu.

Deixou o carro aberto. Antes de se dirigir a casa abriu o porta-malas e de lá retirou uma pesada bolsa de couro velha e surrada. Fechou. Observou que a noite era especialmente bela. Uma lua crescente decorava o céu e iluminava o silêncio que mal era pertubado pelos carros que passavam longe na estrada. Resolveu que havia ainda tempo para mais um cigarro. Pensou que um dia deveria se desfazer do velho Corcel II, que nada duraria para sempre, nem mesmo seu carro, companheiro de muitas madrugadas.

Se dirigiu a porta. estava aberta. A casa estava escura. Apenas um fio de luz parecia vir da área de serviço. Era possível ouvir um rádio baixinho. Ela estava ao lado do rádio, com seu vestido de flor. Lenço na cabeça, tradiocionalmente utilizado em noites que cuidava do cabelo usando seus velhos rolinhos. Parecia dormir ou orar.

Ele parou a dois metros de distancia. Foi quando ela sentiu sua presença.

- Você?

Ele permaneceu em silêncio. Deixou transparecer um sorriso, cínico como qualquer um que ele distribuia. 

Abriu a bolsa de couro em meio a casa mal iluminada. Era possível para ela apenas ver que ele havia retirado algo e erguera o braço em meio a penumbra. Deu dois passos a frente.

A voz dela exalava um desespero cansado.

- Não, por favor, o alicate de novo não, tem mais de uma semana que você vem aqui com esse alicate, eu não aguento mais!

O Corcel II nunca vira sangue no piso de ardósia.

- E então meus amigos e amigas, nada como o amor que toma conta dos corações dessa terra. Eu, Sérgio Lourenço tua voz amiga das madrugadas vou me despedindo mas claro, sempre com o compromisso de voltar, por que as madrugadas são dos amores mais sinceros e nobres. Sinta bem meu amigo e minha amiga, é o olor de Dama da Noite que percorre os cantos de nossa pacata e familiar cidade. Vou embora deixando uma canção belíssima e claro desejando que todos vocês fiquem na paz de Nosso Senhor Jesus Cristo. E lembrem-se, esse programa é mais um oferecimento do Posto Caminho da Felicidade, a sua parada ideal nas noites de viagem. Um abraço!



3 comments:

Mauro Andrade said...

pqp, eu fui levado a um climax cortado no final. impressioannte. trágico mas muito bom. parabéns!

Kadu Mauad said...

superação, meu amigo! Suscinto, terrível, macabro, idílico, massa pra caralho!

Anonymous said...

Duas coisas das antigas que eu sinto falta, ondas curtas e corcel. do tempo que rádio e carro eram de verdade e confortáveis...