E foi no quinto dia útil – dia de pagamento que não saiu –
que Deus, sem poder sair de casa fez o mundo. Caçoou das alturas que desenham o Vale do
Paraibuna e abriu trilhas. Fez das encostas, morada. Das vielas, ponto de
encontro.
Deus fez o homem sua imagem e semelhança: chinelos, bermuda,
camiseta, boné, a pele preta - menos preta que a cor dos cabelos. E quis Deus
que o homem não vivesse sozinho, padecendo da solidão de ouvir seu rádio e
louvar apenas orixás e arquétipos masculinos. Sendo assim, ele permitiu que a
polícia militar, na madrugada fria do Buraco do Olavo, retirasse através de
bicudas na costela do homem, uma mulher.
Para que esse homem se alimentasse e provesse sua prole,
Deus permitiu a ele que vendesse CDs e DVDs piratas na avenida Getúlio Vargas e
em suas ruas transversais. O mesmo Deus, onisciente, decidiu que faria vista
grossa caso sua cria fosse dada a outras ilegalidades menos inocentes.
Desde então, o homem passou a viver sob a égide do “dai ao
fiscal de posturas o que é do fiscal de posturas”. E o mandamento, epístola,
jargão, caô, parábola, passou a valer para toda autoridade civil ou militar.
É no trespassado da ponte, que liga ao centro a zona leste,
numa travessa discreta, dentro de um barraco de dois cômodos que ele guarda
caixas de meias, sombrinhas, guarda-chuvas, bolsas femininas, bijuterias e uma
gama de produtos fruto da desatenção alfandegária ou do trabalho barato dos
chineses.
Deus colocou no paraíso de esgoto ao céu aberto uma árvore
de frutas podres. Foi o que deu, mediante a contenção de recursos. E o diabo
que apenas queria dormir todos os dias foi delatado como responsável pelo
produto vencido e tornou-se cúmplice dos pretos do paraíso falido. Foi tocar
piano na delegacia de Santa Terezinha.
Desde então rádios e jornais noticiaram a decadência do paraíso. Deus lavou as mãos, o Diabo morreu na última rebelião do CERESP.
E as crias, nascidas da cópula de dois irmãos, habitaram o
resto do Vale do Paraibuna, lavaram seus corpos e se tornaram brancos, lavaram
suas mentes e se tornaram pessoas de bem.
E nenhuma delas sabe, ou ousa saber, que nas madrugadas frias da cidade, das
vielas, das encostas, continuam arrancando de homens e mulheres outros homens e
mulheres com bicudas nas costelas, tapas na cara e muitos tiros.
Foi Deus que
criou o silêncio do ardor da pele que apanha e a escuridão dos olhos cerrados.
2 comments:
Muito bom, camarada! Esse merece o contos urbanos.
Gostoso de ler. Parabéns!
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